quarta-feira, 17 de julho de 2013

8 - Necessidades

Ania:

Quando abri os olhos pela manhã, poderia ter julgado que o Marcos não tinha cá estado à noite, poderia pensar que tinha sido um sonho, que tinha sido tudo fruto da minha cabeça. Mas não. Sei que foi bem real. Que ele esteve aqui comigo, contra a minha vontade, confrontando-me com o que mais temia.
Saber que...por muito que não o consiga admitir...ele tem a sua razão. Eu quero que haja um nós. Quero que haja um eu e ele, um ele e eu. Eu preciso dele...preciso de nós. Ele pensa que eu não tenho essa noção, mas tenho-a. Sei perfeitamente que o Marcos me vai conseguir ajudar porque, ele esteve aqui, contrariando o que lhe pedira, contrariando a minha tentativa de o tentar afastar neste momento.
Sei que ele sabe que não me pode ver como me via. Eu não me vejo dessa maneira...logo ele saberá que também não o deve fazer. Não estou pronta para algo com ele, como estava à dois dias. Não estou pronta para assumir algo...é como se, aqueles dias depois da violação tivessem voltado. Muita gente fica surpreendida e perguntam-me como é que em tão pouco tempo me sentia bem. Eu não sei essa resposta. Sei que fui avançando passo a passo e estava bem, sentia-me bem comigo mesma e estava tranquila. 
Mas hoje...hoje sinto-me a mesma. Cansada. Com a boca seca. Os mesmos pesadelos. As mesmas lembranças. Os mesmos cheiros, sabores e odores. Sinto-me lixo. Mas também me sinto diferente. Sinto-me aliviada porque não existem restos em mim daquela noite. Sinto que, apesar do medo que me mete, tenho um rapaz a meu lado. Tenho o Marcos. Não o queria...não sei como lidar com ele. Não o consigo encarar da mesma maneira, nem sei como o fazer. Como é que olho para ele? Como é que ele olhará para mim? O toque...faz-me confusão, não parece ser o mesmo.
Perdida na minha própria cabeça, só dei conta que a enfermeira tinha entrado no quarto quando me tocou na mão:
- A menina sente-se bem? - perguntou ela. 
- Como é que acha que me sinto? Muito provavelmente não sabe porque nunca foi violada!
- A menina precisa de descansar. 
- Não. Eu preciso de sair daqui. Sou maior de idade e sei que tenho os meus direitos. Não me dêem mais calmantes. Isso não me irá ajudar.
- Mas vai precisar deles.
- Não. Não vou. Se meter na cabeça que preciso, estarei dependente deles até ao fim da minha vida e não é isso que quero. Agora diga-me: quando é que tenho alta?
- Daqui a pouco o médico e o psicólogo vêm falar consigo.
- Os meus pais estão por aí?
- Não. Os seus pais só podem vir da parte da tarde que é a hora da visita. Precisa de alguma coisa?
- Talvez...pequeno-almoço. Tenho alguma fome. 
- Fique descansada que daqui a pouco trazem-lhe qualquer coisa para comer. Mas não pode ser muito, não se esqueça que está a soro. 
- Claro.
- Se precisar de mim, chame. 
- Com certeza. 
A enfermeira saiu do quarto e eu fiquei ali. Os pensamentos voltaram a ser exactamente os mesmos. As mesma perguntas, as mesmas dúvidas, as mesmas angústias...tudo era o mesmo.
Era bom que a visita fosse só à tarde. Os meus pais, por muito que me ajudem, querem encher-me de perguntas, querem saber como estou, o que sinto, o que quero...mas eu não lhes sei dar as respostas que eles esperam ouvir. Eles esperam que eu fale tudo com eles, esperam que seja a filhinha pequena deles e que conte tudo aos papás mas, neste momento, não sei fazer isso.
Como tinha dito a enfermeira, o médico que me tinha assistido chegara ao meu quarto com um psicólogo, que também me tinha acompanhado antes. Fizeram montes de perguntas, montes de perguntas mesmo! "Se for para casa o que fará?", "O que é que sente?", "Lembra-se de tudo o que lhe aconteceu?", "Como pensa lidar com um rapaz?", "Porque não quer calmantes?". Perguntas a que ia respondendo, à minha maneira. Às vezes mais bruta e fria, outras com mais calma e ponderadas.
- Da minha parte, o seu físico está bom. Recuperou bastante depressa, os seus níveis voltaram ao normal, estabilizaram. O físico tem alta - informou o médico - mas só poderá sair daqui se o seu psicólogo achar o mesmo - olhei para o psicólogo. Tinha partilhado algumas horas com eles...durante semanas. Ele confessara me que estava surpreendido comigo. Que nunca um caso como o meu tinha sido tão fácil de curar, que eu tinha uma força que nem eu sabia de onde vinha. Continuo sem saber de onde é que ela veio, se está por cá ainda hoje ou se pensa em voltar. 
- A Ania pode ir para casa. Mas sabes que tens de vir a três sessões por semana comigo. Vamos fazer o mesmo processo de recuperação como o anterior. Achas bem?
- Acho. Mas não sei se será como o anterior. 
- Sei que não vai ser - ele começou, aproximando-se de mim - tu estás diferente, já passaste por isto, tiveste um momento de quebra. E agora tens outra vida. Mais activa. Mais desenvolvida. Com um rapaz. 
- Como é que sabe?
- A tua mãe contou-me...mas disso falemos depois?
- É melhor...
- Vamos tratar da alta dela, então - o meu psicólogo informou o médico e os dois saíram do meu quarto, entrando a enfermeira que me começou a retirar o soro e me ajudou a levantar para ir tomar um duche, vestir-me e ir para casa...
Os meus pais. Pedi que não os avisassem. Seria eu que iria ter com eles e não o contrário. Eu sou maior e não têm de fazer o que não peço. Depois de tudo tratado com a alta, sai do hospital.
Aquele...cheiro! Meu Deus...acho que o cheiro de La Plata nunca foi tão maravilhoso ao meu olfacto  Deixar para trás o cheiro do hospital...sabia bem...não totalmente porque ainda estava misturado com o cheiro daquela noite.
Para onde ir? Não queria ir para casa. Não queria ser já bombardeada com perguntas, com os meus pais, com os meus irmãos que, a esta hora, já sabem de tudo. 
Caminhei sem destino. Andei e andei sem rumo até que me comecei a sentir fraca demais. Sentei-me num banco de jardim, precisava de descansar...mas o cansaço só parecia aumentar.

Marcos: 

Parecia que tinha dormido demasiado, mas foram três horas. Não podia fazer com que a minha mãe e os meus irmãos percebessem que não tinha dormido em casa, que não tinha dormido nada.
Levantei-me e fui tomar um duche. Depois de me arranjar fui até à sala, onde estava a minha irmã mais nova, a Micaela.
- Buenos dias, Mica. 
- Buenos dias, Marquitos.
- Não foste às aulas?
- Só tenho de tarde, não sabes?
- Pois...desculpa, ando distraído.
- Comigo é que não é...
- Que é que queres dizer com isso?
- Marcos...tens uma namorada? - a Micaela tem 13 anos. É a princesa cá de casa, todos sabem que ela é desbocada e que consegue ler uma pessoa melhor do que se pensa.
- Porque dizes isso?
- Porque ficas fora de casa depois dos treinos e andas, melhor andavas com um sorriso todo lindo. Mas ontem e hoje não. Podes falar comigo. 
- Contigo pirralha? 
- Sabes que se me pedires não contarei a ninguém.
- Prometes?
- O que?
- Que se eu desabafar contigo não vais contar a nenhum dos manos, nem à mãe?
- Prometo mano - a Micaela era a única com quem eu desabafava disto do coração. Desde há um ano atrás. Ela abriu-se comigo uma vez por causa de um rapaz, nunca contou à mãe porque não se sentia tão à vontade. 
Sendo o irmão mais velho de 3 meninas...tenho de se um bocadinho pai delas todas...depois de o nosso pai morrer, a Micaela sofreu com isso o que nos aproximou ainda mais.
- Então...eu conheci uma rapariga.
- E ela deve ser linda e maravilhosa para te deixar assim.
- Pode dizer-se que sim...
- Mas vocês são namorados?
- Mais ou menos?
- Mais ou menos, como?
Tínhamos começado...só que tinha de ser às escondidas. 
- Porque?
- Ela é filha de um dos meus treinadores.
- A serio!?
- Sim. Só que ela agora está com um problema muito grave e tivemos de nos afastar muito. 
- Muito? Quanto?
- O espaço suficiente para ela ter o espaço dela...e superar o problema dela. 
- Mas estás com ela, não é?
- Sim...ela é que pode não querer que eu esteja com ela.
- Sabes...tens de seguir o que o teu coração te diz Marcos. Só assim saberás o que fazer e como a ajudar. 
- Desde quando é que ficaste assim tão crescida?
- Sabes bem desde quando...
- Obrigado Micaela! - puxei a minha irmã para mim e abracei-a. Nisto chegam à sala a minha mãe e a minha irmã Noelia. 
- Bem...que amiguinhos que eles estão - comentou a minha mãe. 
- O Marcos já não sabe viver longe de mim - atirou a Mica. 
A minha mãe gargalhou e o som do meu telemóvel fez ouvir-se naquela divisão da casa. Retirei-o do bolso e no visor apareceu: Cinderela. Era...a Ania. 
- Com licença, tenho de atender - levantei-me, indo até à varanda, atendendo de imediato a chamada - Ania...
"- Marcos..."
- Nem sabes a surpresa que é para mim estares a ligar.
"- Pois...acredito. Marcos...preciso que venhas ter comigo."
- Mas as visitas são só de tarde.
"- Eu já não estou no hospital."
- Não estás?
"- Não...estou num jardim, fica perto do hospital, vim a pé por isso deves conseguir encontrar...mas não sei bem onde fica."
- Eu encontro...mas porque é que foste sozinha? Ainda por cima a pé. Tens de descansar. 
"- Percebi isso agora..."
- Eu vou já ter contigo. 
"- Obrigada."
- Tens de deixar de agradecer o que eu faço por ti. 
"- É complicado não o fazer."
- Vá, vou despachar-me a encontrar-te. 
"- Obrigada."
- Até já.
"- Até já." 
Desliguei a chamada e fui de novo até à sala. 
- Mulheres, tenho de sair - avisei as três. 
- Já comeste alguma coisa? - perguntou a minha mãe. 
- Não...mas eu como, não se preocupe. 
- Passou-se algo? - inquiriu a Micaela.
- É aquele amigo que te falei agora, acabou de chegar e vou ter com ele - sabia que só assim a Micaela ficava descansada. Dei um beijo a cada uma delas, peguei nas chaves do carro e sai de casa disparado. 
Fui até ao hospital e decidi procurar o jardim de carro. Onde quer que a Ania estivesse, tinha de a encontrar, saber como estava e levá-la para um sítio onde descansasse. 
Procurei, procurei e ela andou ainda alguns km. Estava mais distante do hospital do que pensava. Encontrei, sentada no banco do jardim, mais pálida que o normal. 
Sai do carro e corri na sua direcção.
- Ania... - aproximei-me dela, tocando-lhe na testa. 
- Ainda bem que chegas-te...preciso de... - ela queria acabar a frase, mas as palavras não lhe saíam. 
- De que precisas?
- Eu preciso...preciso de...ai...jurei a mim mesma que o dizia.
- Diz.
- Eu preciso... - ela inspirou fundo e olhou-me, pela primeira vez desde que chegara ao pé dela. Estava cansada, demasiado cansada.
- Se não o conseguires dizer...não digas. 
- Mas tu precisas de ouvir. 
- Só se tu precisares de o dizer é que fará sentido. 
- Eu preciso de o dizer. 
- Di-lo. 
Ela voltou a inspirar fundo, agarrando-me na mão.
- Eu preciso de ti, Marcos.