A mãe da Ania preencheu os papeis que me tinham dado e, quando estávamos os dois sentados na sala de espera aguardando a chegada do pai dela, não se falou do assunto. Fazia-me confusão...saber tudo assim do nada. Saber que ela fora violada, que pode estar grávida...mas que está em sofrimento. É um choque...e é horrível.
Entretanto o Hugo chegou ao hospital, super aflito e pude ver o que a Ania realmente significa para ele. O Hugo fala da Ania como se ela ainda fosse a bebé dele, como se fosse indefesa. Neste momento compreende-se porque ela está desprotegida e pode muito bem ter um retrocesso no que já tinha conseguido depois da violação.
Só de pensar...dá-me nojo! Como é que estes casos ainda existem nos dias de hoje? O mundo está mesmo todo perdido.
- Mas porque é que não nos dizem nada? - perguntou o Hugo impaciente.
- Tem calma Hugo. Eles têm de fazer os exames todos - eu era um espectador...não dizia nada, nem me perguntavam nada a mim, até preferia. Não sei mesmo o que dizer neste momento.
Meia hora passou até que chegou um homem de bata verde ao pé de nós. Todos nos levantámos.
- São familiares da Ania Gottardi?
- Somos sim - respondeu a Ortencia, a mãe da Ania.
- Presumo então que saibam do historial da vossa filha.
- Sabemos sim senhor doutor, mas é algo grave? - inquiriu o Hugo.
- Bem...depende do ponto de vista. Como ela mesma me relatou, depois do episódio da violação, ela menstruou normalmente. Contudo, o que nós temos aqui é uma gravidez - e confirmava-se...ela estava grávida. Tanto o Hugo como a Ortencia ficaram chocado - mas que teve um fim.
- Você está a querer dizer que a minha filha abortou? - a Ortencia, num tom de alivio, fez a pergunta que todos queríamos fazer.
- Sim. A Ania teve um aborto espontâneo. Ela agora está estável. Está a soro para se hidratar, mas nos próximos dias irá precisar de todo o apoio que lhe conseguirem dar. Penso que recordar tal experiência não lhe tenha feito bem.
- Mas ela está mesmo, mesmo bem? - perguntei.
- Está rapaz, fisicamente está, não corre nenhum risco. Têm é de ir com calma com ela e, calculo que seja o namorado dela, tens de ter paciência nos próximos dias.
- Não eu sou amigo dela. Nós não namoramos - à frente do pai dela, não era nada esta conversa que queria ter.
- Sendo assim não se esqueçam, dêem-lhe todo o apoio que conseguirem e o que ela quiser.
- Podemos vê-la, doutor?
- Claro. Acompanhe-me a senhora primeiro, porque ela pediu para a ver.
- Com certeza - a Ortencia foi com o médico e eu fiquei com o Hugo na sala de espera.
- Ainda não percebi o que é que estás aqui a fazer Faustino.
- Eu...bem...eu estava a tomar o pequeno-almoço no seu café, quando a sua mulher estava para vir com a Ania para o hospital. Então eu trouxe-a enquanto a D. Ortencia ficou a fechar o café.
- Muito obrigado rapaz - ele deu-me um abraço e sentou-se na cadeira - tens a certeza que és só amigo dela? - buraco para me enfiar, onde andas?
- Fique descansado, mister. A Ania e eu somos só amigos.
- Acho bem que sim - sentei-me ao lado dele e esperamos que a Ortencia chegasse.
Quando ela chegou à sala de espera, só olhava para mim.
- Então, como é que ela está? - perguntou o Hugo.
- Vamos voltar a ter de olhar pela nossa menina como deve ser. Ela só chora...
- Ai a minha Ania...achas que posso lá ir?
- Sim podes, vai indo que eu já lá vou ter também. Deixa-me falar com o Marcos.
- Até já - o Hugo foi andando pelo corredor e a Ortencia sentou-se a meu lado.
- Marcos...eu quero agradecer-te por tudo o que fizeste.
- Não precisa de me agradecer. A Ania...ela é...
- Eu sei de tudo entre vocês.
- Ela é muito importante para mim.
- Então tens de lhe fazer a vontade.
- Como assim?
- Ela não quer que a vejas. Não quer que vás ao quarto dela. Tens de lhe dar uns dias.
- Foi ela que lhe pediu?
- Sim. Ela está ainda muito revoltada e parece-me que voltou à estaca zero. Ela sabe que tu sabes e sente vergonha.
- Mas ela não tem de ter vergonha de mim.
- Eu sei...mas tenta entende-la. Faz isso por ela.
- Eu vou fazer D. Ortencia.
- Mas uma vez obrigada por tudo - a senhora deu-me um abraço, levantou-se e foi embora.
Enquanto o meu corpo não ganhou força fiquei ali...sentado na sala de espera. Eu compreendia e ia respeitar o que ela tinha pedido...não sei é quanto tempo o irei fazer.
Ania:
Suja, usada...sinto-me horrível. É como se...estivesse a viver o momento a seguir...a seguir ao que aconteceu naquela noite. Parece que o meu corpo não é meu, que pertence a outra pessoa. A uma pessoa que foi humilhada, usada e jogada no lixo por um homem nojento.
Mas...saber que não estou grávida é a melhor coisa a retirar deste dia. Se...uma criança estivesse a nascer dentro de mim e fosse o resultado daquela noite era a pior coisa que me podia acontecer.
Não quero ser outra vez o peso que fui para os meus pais...mas sei que estou de volta à estaca zero. Preciso de um banho urgentemente...deverá ser a única coisa que me irá fazer sentir ligeiramente melhor. E...o cheiro. Parece que voltou aquele cheiro que ficou em mim depois de aquele homem...me ter feito tudo o que quis.
Se...foi o Marcos que me trouxe até aqui...ele sabe o que aconteceu e ao falar com a minha mãe tive essa certeza. Eu não o queria perto de mim, não agora. Iria ver-me como a coitadinha que foi violada, iria querer tocar-me, iria querer falar comigo e saber o que aconteceu e eu não quero nada disso. Ele...pode saber, eu não me importo, sei que mais cedo ou mais tarde lhe teria de contar se as coisas entre nós avançassem...mas não o quero ao pé de mim agora. Eu sei que não estou preparada para estar com ele, da maneira que estou.
Não me apetece falar com ninguém e é o que os meus pais mas querem fazer. Queriam ficar comigo esta noite aqui no hospital, mas implorei-lhes que, por mim, fossem para casa e me deixassem sozinha. Depois de muito resmungarem...foram embora. E, como estava meio agitada, uma médica deu-me um calmante para me meter a dormir.
Marcos:
Estar aqui, no meu quarto, sabendo que a Ania está no hospital...a sofrer é sufocante. É impossível eu ficar aqui muito tempo. Quer dizer: como é que eu ainda aqui estou? Levantei-me da cama, peguei na carteira e nas chaves do carro e sai do quarto. Fui até à sala, onde estava a Micaela, a minha irmã mais nova:
- Mica diz à mãe que eu tive de sair.
- Onde é que vais?
- Isso não é da tua conta.
- Era só para saber.
- Eu sei, desculpa. Mas vá, eu depois conto-te.
Sai de casa, indo na direcção do carro. Entrei nele e fui até ao hospital. Quando lá cheguei fui até à recepção:
- Boa noite...eu não sei se será possível, mas eu queria ver uma pessoa.
- Já não estamos na hora da visita.
- Pois...mas é que eu preciso mesmo de ver uma pessoa.
- Qual é o doente?
- Ania Gottardi.
- A menina está a dormir. Tomou um calmante à pouco.
- Mas não vai dar mesmo para a ver?
- A única coisa que eu posso fazer por si...é entrar como acompanhante dela, só assim conseguiria justificar a sua presença no quarto.
- Então posso ir?
- Pode. É no corredor dos quartos, o número 215.
- Muito obrigado! - fui em direcção do quarto.
Abri a porta com cuidado e ela estava a dormir. Sentei-me na cadeira ao lado dela. Só...olhar para ela, dizia-me que ela não estava bem, que ela iria precisar de muito apoio e que o meu lugar era aqui.
- Cinderela... - toquei-lhe na bochecha, mas ela não acordou. Queria que ela soubesse que eu não a julgarei, é óbvio que nunca o faria, como é que o poderia fazer?
Só quero que ela saiba que estarei para ela da maneira que ela precisar, mas que...longe um do outro eu não quero que assim seja. Eu quero estar ao pé dela, ser o apoio que ela precisa...eu quero ser algo real para ela - eu sei lá se estás a ouvir, mas...é só para que saibas que eu estou aqui.
Puxei a cadeira mais para junto dela e fiquei simplesmente a olhá-la. Não demorou muito para que a começasse a ver a mexer. Ela estava a sonhar...deveria ser um pesadelo.
E...de um momento para o outro, ela chorava...ela tremia mas não fazia qualquer barulho. Ela estava em grande sofrimento e o meu instinto foi abaná-la para a acordar. Ela abriu os olhos e chorava. As lágrimas eram grossas e escorriam-lhe pela cara.
- Eu estou aqui...
- Mas eu não te quero aqui.
- Eu sei que não. Mas eu quero estar aqui - ela virou-se para o outro lado, continuando a chorar. Afastou-se de mim, ficando mesmo na ponta da cama - precisas de alguma coisa?
- Que te vás embora Marcos...por favor.
- Não. Eu quero ficar contigo. Eu quero ser um apoio para ti, tudo o que tu conseguiste conquistar depois do que te aconteceu, não pode simplesmente desaparecer. Aquela chama que havia ontem em ti, tem de voltar. Tu tens de voltar para...que haja o nós que eu e tu queremos. Eu não te vou exigir nada...neste momento quero que recuperes, que me deixes ajudar a recuperar-te...eu preciso mais de ti do que pensas...e tu o mesmo. Podes não ter essa noção...mas tu precisas de mim, precisas de nós - sempre foi fácil, para mim, falar dos meus sentimentos. Sempre os consegui expor para todos sem nunca me preocupar com as consequências e, neste momento, é a vez mais importante em que dizer o que sentia fazia mais sentido.
A Ania, contudo, não falou, nem sequer se mexeu. Não sei o que ela está a passar...mas quero entende-la. E preciso que ela me ajude com isso.
Avancei com a minha mão na direcção das costas dela...tinha medo de o fazer...ela poderia fugir, mas mesmo assim tentei.
Assim foi...ela afastou-se e eu recuei. Com a mão. Eu sei que devia respeitar o espaço dela, mas também sei que não o quero fazer. Deitei-me na cama e puxei-a para mim. Foi uma luta, ela gritou comigo, fez tudo para me afastar, inclusive tentou morder-me.
- Se não me deixares ficar aqui, eu saiu por aquela porta e nunca mais volto e só saberei de ti se fores tu a vir ter comigo - senti-me mal em "ameaçá-la" mas foi a forma que arranjei para saber o que ela queria. Ela parou, encostou-se ainda mais a mim e chorou, lágrimas grossas novamente.
- Fica... - ela falou. Virei-a para mim, o que não foi fácil, mas a Ania acabou por ceder. Ela não me olhava, olhava para o meu peito, mas agarrou nas minhas mãos e continuou a chorar, sem nunca falar.
- Eu estou aqui para ti, Cinderela.
- Marcos...eu...
- Eu não preciso que fales... - coloquei a minha mão no queixo dela e fiz com que ela me olhasse. Ela estava...num estado terrível. Os olhos dela perderam aquele brilho e a única coisa que se via neles era o sofrimento dela - tu és linda, Ania. Descansa que bem precisas.
- Mas...
- Dorme, apenas descansa. Eu estarei aqui durante a noite. E vou embora antes que os teus pais cheguem - ela nada disse. Encostou a sua cabeça no meu peito. Chorou ainda durante algum tempo, mas acabou por adormecer.
Eu...fiquei a noite toda acordado, não consegui dormir. Queria ter a certeza de que ela estava bem e de que não adormecia.
Eram 8:00h quando sai da cama. Tentei que ela não acordasse e fui bem sucedido. Ela estava tranquila a dormir. Dei-lhe um beijo na testa e fui até casa. Ainda ninguém estava acordado, por isso fui até ao meu quarto, deitei-me e acabei por adormecer.